Tempestade de morcegos

A noite tempestuosa não era boa companhia para o pequeno Alfredo. Seus olhos permaneciam abertos, alertas, atentos com o som dos coices raivosos do vento. As telhas da casa miúda estremeciam ansiosas no telhado. Qual destino teriam se fossem levadas montanha abaixo? Talvez atingissem algum carro estacionado, ou talvez tomassem um rumo mais mórbido, quebrando na cabeça de alguma velha distraída na calçada. Morrer de telha era uma sina que Alfredo não desejaria a ninguém.

Seus pais dormiam no quarto ao lado. A casa era tão pequena que parecia uma coisa só. De quando em quando, entre as paredes, ouvia-se sons esquisitos como se existisse um sofrimento perpétuo nas madrugadas entre o pai e a mãe. Gostava quando chovia, pois o barulho da água no telhado escondia o choro e o ranger da cama de ferro. Todavia, a tempestade daquela noite era muito mais assustadora do que qualquer nhec-nhec que passeava abafado pelos corredores da casa.

A família morava em São Boaventura, uma pequena cidade fadada ao esquecimento. A casa ficava no topo de um morro a cem metros de uma igreja cinzenta de arquitetura peculiar. Tinha uma torre no formato de um “A”, e um sino que cantava com tristeza ao toque do vento: — Blém-blom-blém-blom — era como se pedisse ajuda. De fato, o terror da noite mostrou-se irremediável quando a manhã trouxe consigo o sol e calor.

Havia um vuco-vuco dos paroquianos perscrutando o estrago. Alfredo observava tudo pela janela da cozinha. Seu pai, o pastor local, coçava a cabeça calva e carregava nas mãos um pequeno objeto cinzento ao qual Alfredo não conseguia decifrar daquela distância. Olhava curioso o que os adultos faziam e desejava estar entre eles.

Quando percebeu a distração da mãe — copiava em um papel a receita dada por Ana Maria Braga no programa “Note e Anote” — saiu de fininho e foi correndo até a igreja. Ao chegar mais perto percebeu a causa de toda a comoção: parte do telhado fora levada pelo vento, e o interior da igreja parecia devastado. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi o que avistou em seguida: havia um oceano de morcegos mortos jogados no chão. O que o pai carregava, no final das contas, era um dos defuntos.

— Filho, você devia ter ficado em casa! — disse o pai. Não estava bravo com o garoto; preocupava-se com a sua segurança. — Veja que pecado — mostrou o animalzinho ao menino.

Sim, um pecado. O morcego tinha a pele tão fina, tão frágil! Não parecia assustador como mostravam os filmes de terror. Era uma criatura minúscula e fofinha. Alfredo nunca tinha visto um morcego de perto.

Descobriu-se que havia um ninho abrigando os morcegos entre o forro e o telhado, de modo que foram dilacerados pela ventania, criando uma cena terrível aos pés da cruz de Jesus Cristo. Alfredo contemplava a cena com horripilante fascínio.

O garoto caminhou como um detetive pelo cemitério observando cada uma das vítimas. A grande maioria estava morta, porém ele conseguiu notar que alguns morcegos ainda se mexiam e emitiam sons agudos reverberantes. Será que continuariam sofrendo por muito tempo? Ou será que sobreviveriam? Alfredo foi até um dos bancos para se sentar; sentia a cabeça flutuante demais para permanecer em pé.

Sua mente se encheu de sombras, e a dança dos sonhos o levou de volta para a noite anterior. A chuva que caía era vermelha e viscosa. Das paredes da igreja emergiam duas asas gigantescas e pontiagudas de um morcego albino. Dentro dos seus pensamentos ecoava uma voz que soava como um ancião: “pois o templo de trevas será construído e o tempo das trevas irá começar.”

E o sino mais uma vez chorou: blém-blom-blém-blom.

LEVANTE-ME DO CHÃO.

Um raio desceu dos céus e explodiu Alfredo em centenas de pedaços grotescos.

LEVANTE-ME DO CHÃO.

A voz continuou. Alfredo demorou um bocado até notar que estava deitado no banco duro da igreja e que tinha sonhado. Seu coração disparou ao perceber uma respiração profunda próxima dos seus ouvidos. Entre as respirações a frase “pois o templo de trevas será construído e o tempo das trevas irá começar” ecoou nas profundezas do seu ser.

OLHE PARA BAIXO, GAROTO ESTÚPIDO.

Então olhou. Destacava-se no tapete de morcegos cinzentos um pequeno morcego albino, branco como um algodão, e com olhos vermelhos vibrantes. Entorpecido, Alfredo pegou o animal nas mãos.

DÊ-ME ALGO PARA COMER.

Botou o morcego no bolso da bermuda e voltou depressa para casa. Revirou os pacotes de pão na cozinha, fez um sanduíche e foi para o quarto. Deixou o travesseiro no centro da cama para que o morcego ficasse mais confortável e o colocou em cima. Alfredo tentou dar de comer ao animal, porém ele rejeitava emitindo gritinhos raivosos.

NÃO QUERO ESSA PORCARIA. DÊ-ME O SEU SANGUE.

Por mais que tentasse, Alfredo não conseguia resistir às ordens do morcego. Sentia a frieza da voz sugar o restante do livre-arbítrio de seu corpo. Sucumbir parecia mais delicioso do que objetar ao pedido. O garoto mostrou o pulso ao seu mestre e o permitiu que se alimentasse.

O terror era como um véu que esvoaçava cada vez mais distante. A frieza no seu sangue foi substituída por um prazer inexplicável. Alfredo e o morcego dançavam em sincronia na valsa da morte, intrincados na correnteza de uma paz harmoniosa.

Ao cair da noite, Alfredo foi até a cozinha e começou a revirar a geladeira, faminto. Comia tudo o que encontrava, principalmente as carnes cruas e sangrentas que estavam marinando para o jantar. Seus pais viram a cena com espanto e o forçaram a parar, porém o menino frágil agia como um animal fora de controle. Seu pai não tinha forças para segurá-lo, o que era surpreendente, já que o filho parecia murcho e extremamente fraco.

— Alfredo, tome tento! Você está nos assustando. Que tipo de brincadeira é essa? Carne crua? Pelo amor de Deus! — o pai fumegava. O que diabos o filho estava tramando?

— Fredo Fredolino! Já para a cama, e fique lá até amanhã! — Gritou a mãe.

Ele foi. Ambos ficaram abismados pela mudança repentina na atitude do filho. Conseguiram respirar aliviados naquela noite.

Amanheceu, e nada de Alfredo sair do quarto. Quando o pai abriu a porta um tapete de sombras invadiu o corredor. Alfredo estava nu, pendurado de ponta cabeça no centro do quarto. Suas costas sangravam enquanto as articulações vibravam debaixo da pele, fazendo nascer duas grandes asas pontiagudas. O quarto inteiro cheirava a carniça.

O pai de Alfredo, um pastor devoto de Deus por anos, que buscava refúgio nas palavras da Bíblia, viu-se esfacelado da própria fé. Pai, no que posso crer, se o que está diante de mim desafia toda a Tua palavra? O homem ajoelhou-se no chão, e, surgindo da escuridão, outra criatura da mesma semelhança abriu o estômago como uma boca faminta e o devorou por completo.

As investidas sanguinárias do morcego albino despertaram em Alfredo mais vontade de comer. Queria sentir o sabor do sangue fresco. Queria voar pelas montanhas e consumir vidas inteiras. Queria cear ao lado dos seus, sugando todo o medo e resistência que haveriam de ter em suas carnes. Queria escapar dali e finalmente viver o seu chamado.

Seus delírios o levaram para a igreja. Estava vazia. Sem bancos, sem telhado, somente a estrutura das paredes em ruínas. Próximo ao altar havia uma cadeira branca de plástico. Alfredo, com suas asas abertas e esbeltas, agora um homem formado, emanava uma saúde física surpreendente. Sentou-se na cadeira e aguardou.

Milhares de olhos surgiram dos céus e desceram até o centro da igreja — era o anjo Serafim! Uma noite eterna se formou ao redor deles. Alfredo deu um salto, tentando escapar daquela fúria celeste, mas não obteve sucesso. As garras do Serafim mantiveram-no preso à cadeira. Uma multidão de outros espíritos levitava ao redor da igreja. Alfredo não deixou de notar que todos eram muito semelhantes aos morcegos caídos.

— Pois o templo de trevas será construído e o tempo das trevas irá começar — disse o Serafim — UM NOVO ANJO SERÁ ELEITO — ecoaram todos os outros espíritos.

Serafim caminhou na direção de Alfredo; voltara a ser mais uma vez um garotinho de cinco anos assustado com a tempestade.

— Pois você me salvou da morte. E agora, eis que o teste começará — o Serafim fez o sinal da cruz na testa de Alfredo. Sua pele queimava no local onde o anjo encostara. As lágrimas de dor desceram involuntariamente; não conseguia ser forte. Por qual teste deveria passar? Não queria nada daquilo.

Como se pudesse ouvir o que Alfredo pensava, Serafim continuou:

— Pois o teste assim se dará: o sangue de sua mãe pela salvação dos povos. E assim será eleito o anjo. Pois é ele quem arrebatará o mundo das trevas.

Os dedos da morte tocaram as têmporas de Alfredo jogando-o de volta ao seu quarto. A dor aguda da solidão o abraçou. Seu pai tinha sido devorado. O morcego albino sumira. O sangue de sua mãe pela salvação dos povos. A voz do Serafim causou um terremoto em sua cabeça.

Suas asas pesadas o fizeram rastejar pelo espelho sangrento que banhava o piso. Ao olhar pela janela, deparou-se com a inexistência da cidade abaixo. O abismo engolira o que antes fora São Boaventura, deixando para trás a colina flutuando na escuridão.

Num esforço doloroso, Alfredo voou pela janela. Estaria ele também morto? Seria aquele o inferno que o pai mencionava com frequência em seus sermões? O que fizera em vida para receber tamanho castigo? Teria falhado em pedir perdão no último instante? Teria cometido um pecado tão imperdoável assim? O que um garoto de cinco anos poderia causar de tanto mal a esse ponto? Se aquela era a vida eterna, onde estava o seu pai e todos os outros que já tinham partido?

Alfredo pousou próximo à igreja e caminhou pelo gramado seco. Era como se toda vida tivesse sido ceifada. Suas lembranças ficavam cada vez mais distantes, e o aperto no coração era a única coisa que o mantinha conectado a si mesmo. Sentia falta da mãe. Como uma criança desolada, perdida de toda esperança, o garoto grunhiu: — MÃE!

Num instante voltou a ser uma inocente criança que corria em direção aos braços da mãe. Ela colhia morangos na horta do quintal. Fazia sol e o ar era quente como num típico verão.

Suas asas grotescas sumiram e seu mundo foi restaurado. A mãe deu-lhe os morangos que lavaram a sua alma com o sabor adocicado e levemente ácido. Sentia-se em paz, em casa novamente. Comia os morangos com vontade e gana. O suco vermelho escorria pela sua boca, e a lembrança do sangue borbulhante voltara com tudo. O que comia não eram morangos.

O SANGUE DE SUA MÃE PELA SALVAÇÃO DOS POVOS.

Ouviu aquela voz decrépita do morcego albino sequestrar qualquer possibilidade de raciocínio.

POIS O TEMPLO DE TREVAS SERÁ CONSTRUÍDO
E O TEMPO DAS TREVAS IRÁ COMEÇAR.

O céu se fechou em tempestade. Não eram nuvens que carregavam o firmamento, mas uma multidão de morcegos guiada por uma única criatura albina: Serafim.

Alfredo olhou nos olhos desesperados da mãe. Ele mordia o seu pescoço! Ao sentir o calor do sangue tocando os seus dedos compridos o garoto foi tomado por uma fome ainda mais insaciável. Alimentou-se dela até vê-la vazia. E viu Alfredo tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *