Larvas em pêssegos maduros

Sinto falta da emoção que é estar por trás das cortinas de um palco. Crianças enfileiradas na escadaria segurando os violinos perfeitamente posicionados para não dar vexame, porque tudo ali é uma cerimônia. As camisetas brancas grandes demais para os pequenos corpos, estampadas com o logo da orquestra sinfônica naquela estética específica do início dos anos 2000. Mãozinhas suando e os coraçõezinhos batendo forte; pessoinhas unidas com o mesmo objetivo: arte.

Por algum motivo lembrei dessa cena, um sentimento já tão distante. Nunca mais subi aos palcos para tocar violino, porque desisti dele ainda criança. Tentei estudar na vida adulta através de um curso online, mas nunca foi a mesma coisa. Para além de tocar violino eu queria estar nos bastidores de um teatro ouvindo os sussurros das pessoas espectadoras. Eu queria a sensação de transmitir arte.

Em 2022, eu mantinha uma rotina de ensaios com horário marcado e tudo mais. Nessa mesma época minha loja de café, que fica na minha casa, dava seus primeiros passos, de modo que a clientela era escassa, e eu não dava importância se minha disponibilidade oscilava com outras atividades do dia a dia; neste caso, os ensaios de violino. Hoje a coisa é tão diferente que parei de ensaiar, pois preciso focar em atender as pessoas que vêm comprar o café.

Enquanto treinava uma das lições do livro Suzuki, ouvi a campainha tocar. A mulher falava com a minha mãe, que regava as flores no pátio. Ouvi a palavra café, e prontamente me desfiz do violino e fui atendê-la. Ficou um tempão conversando comigo. Nada comprou, mas prometeu que voltaria. Nunca voltou. Ela é minha vizinha, portanto continuou me cumprimentando na rua. Em outras oportunidades virou a cara. Pode acreditar que fiquei confuso, mas não dei muita bola, porque mal a conhecia além daquela única e peculiar interação. 

Dias atrás, estando prestes a fechar o portão porque o horário comercial já havia terminado, ouço alguém falando lá fora. Era ela. Trocou algumas palavras com a minha mãe que, por coincidência — ou não — regava as flores mais uma vez. Pensei que tivesse vindo para finalmente comprar o café com três anos de atraso. Nada disso! 

— Tenho muito carinho por vocês — falou, e com um leve constrangimento foi embora.

Não entendi nada. Minha namorada, mais tarde, comentou que só podia ser uma pessoa escrita pelo David Lynch. Isso aconteceu no dia da morte dele, em 15 de janeiro de 2025.

A arte acontece na vida. Os diálogos que vivemos fazem parte das nossas histórias, e pode ser que Twin Peaks e os filmes de David Lynch sejam somente uma representação dessa realidade tão distorcida que temos de acompanhar. Será que os diálogos absurdos são mesmo tão absurdos? Será que uma senhora que conversa com uma tora de madeira é tão surreal assim? David Lynch se negaria a elaborar sobre o assunto.

Fiquei pensando sobre arte. Tenho saudade de fazer algo para o mundo; para mim. Continuei escrevendo e fotografando, eventualmente desenhando alguma coisa, mas sinto que estive tão distante dela. Parece que deixei os padrões das redes sociais ditarem o meu comportamento diante do que eu crio: porque não faz sentido jogar arte no mundo se ninguém se interessa por ela. O importante são os vídeos na vertical com legenda mal diagramada e frases como estão escondendo isso de você, para logo em seguida recomendar um remédio placebo que cura a dor nas costas.

Evitei a arte, porque não vi mais espaço para ela. As paredes para expô-las caíram. Onde foi parar a atenção?

A morte do David Lynch, que para mim continua vivo como uma ideia, e portanto me marcou de forma diferente do que uma simples morte, acendeu o isqueiro da dúvida: não seria hora de dar mais uma chance à arte? Ela que me acompanha desde os tempos em que as minhas pequenas mãos mal conseguiam segurar um violino. Ela que esteve comigo em cada etapa da minha vida.

Porque a arte nunca morre. Ela continua buscando a luz. E nesta ânsia de encontrar mais referências, em 2024 assisti a vários filmes e documentários da Agnès Varda, uma mulher genial e inspiradora, que permitiu florescer em mim um fruto mais maduro e perfumado, como um pêssego no verão.

Deitado no escuro e assistindo Varda por Agnès, um filme comentado pela própria diretora, no qual ela revela suas intenções e bastidores dos seus projetos artísticos, desci em uma espiral alucinada de empolgação e indignação. A empolgação foi por sentir uma grandiosa vontade de saltar da cama para criar, por outro lado a indignação foi ao lembrar que hoje há um deslumbramento pela “arte” gerada através de inteligência artificial. Uma carência de senso crítico. Se tivessem assistido à Agnès talvez percebessem que a emoção humana é mais valiosa do que qualquer desenho seboso feito por um algoritmo plagiador. Mas talvez seja esperar muita coisa de quem mal consegue se debruçar sobre o processo criativo. Estragam o que é doce e belo como larvas em pêssegos maduros.

Fazer arte é encarar de frente o mundo que está se tornando cada vez mais fascista. É um protesto contra quem abusa, quem odeia, quem cria o caos para ganho próprio. Minha arte não me dá nada material, pois não posso colocar o logo de bet(aposta) em uma fotografia e pendurá-la num museu. Pelo contrário, a arte me faz humano, e me sentir humano é tudo o que eu quero.


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