O oceano tem fim

Pudera eu enterrar as referências pelas quais moldei quem eu sou. Pudéssemos nós apagar da memória as coisas ruins que nos fizeram, ou as que fizemos aos outros. Poderíamos ser essa caixa vazia de imaginação, de retalhos sem sentido, que é plástica, sebosa e frívola. Não somos nada disso. A condição humana não nos permite criar a partir de códigos e números; ela exige outros semelhantes a nós. Ela requer a existência de um cérebro pensante e um coração pulsante.

Meu baú de referências é cheio de contradições; às vezes quero esquecê-las, abandoná-las, e vendê-las para algum sebo. Que fiquem bem longe de mim! Todavia, mal consigo movê-lo – o baú metafórico – de lugar. Por mais que me desfaça do que é objeto físico, por mais que queime as páginas dos livros que antes foram de tamanha inspiração, estas páginas continuarão ancoradas no meu oceano particular.

Dou adeus, no entanto, ao período de minha vida no qual essas referências me foram úteis. Já morri no passado; posso morrer novamente. Morremos todos os dias, e renascemos como algo além. Não tenho medo disso, pelo contrário, abraço a oportunidade de largar as muletas que antes serviram-me tão bem. Muletas essas que me guiaram e que me fizeram ser

Cresci querendo escrever como Neil Gaiman. Li seus livros repetidas vezes, e o apoiei em todas as suas aventuras. Imaginei que, se seguisse seus passos, me tornaria alguém capaz de retratar o fantástico como ele. Percebo, agora, que o ultrapassei na estrada e o deixei para trás. Não tolero estupro, abuso e preconceito. Não separo a obra do autor, por mais importante que tenha sido. 

Sonhei esta noite que estava em seu sepultamento; ele que tanto gostava de escrever sobre a morte e seus companheiros sombrios. Uma bela maneira do inconsciente enterrar o baú de referências para dar espaço às novas que virão. 

Pois aqui a história termina. Nunca mais falarei de você.


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