É com grande pesar que anuncio a morte da minha mais adorada bicicleta amarela.
Num final de semana qualquer, em uma decisão que custou a sua vida, decidi subir uma ladeira. Compartilhando fuligem com os carros, tomando lapadas de areia no rosto e trocando inutilmente as marchas deterioradas por duas décadas sem manutenção, o esforço fez com que o rolamento dianteiro virasse farinha. Para não gastar dinheiro com manutenção, e sabendo que o valor daria quase o preço de uma bicicleta nova, doei sua carcaça para um rapaz colombiano que viu o meu anúncio no Facebook Marketplace.
Já vinha pesquisando há alguns meses por uma nova bicicleta, pois sabia que o fim daquela relação de longa data estava chegando. Analisei os diversos modelos e organizei as finanças para conseguir pagá-la. Descobri um universo gigantesco no ciclismo e percebi como a minha vida seria facilitada por uma bicicleta urbana pensada para os obstáculos da cidade.
O ciclismo requer confiança e agressividade. É preciso se impor no asfalto para não ser engolido pelos carros. Quanto mais insegurança você demonstra, menos respeito os motoristas lhe dão. Notei, também, que sou mais respeitado quando uso capacete. Tenho impressão de que eles pensam dentro de suas cabines de metal: esse daí é um rapaz sério, vou dar preferência.
De qualquer maneira, evito sair em horário de pico, pois é quando os carros estão ensandecidos e as crianças da escola desfilam em cima da ciclovia sem qualquer medo do perigo ou consideração por quem pedala. Digo ciclovia, porém está mais para um piso vermelho desbotado que todo mundo usa como calçada.
Meus dias de paz são sábado e domingo. Saio cedo de casa, vou até a praia, observo o nascer do sol, vejo as pessoas fazendo festa – ou terminando ela –, enquanto muitos estão parados nos pontos de ônibus porque trabalham na escala 6×1.
O som do mar liberta a mente.
Decido explorar o meu bairro e percebo que as distâncias parecem longas dentro do carro por causa do trânsito. Na bicicleta eu estou livre, e a minha experiência com o mundo é outra. Nada de reclamação, nada de tédio, nada de esperar em uma fila quilométrica dentro de uma caixa de lata. Somente eu, a natureza e o vento no rosto.
A liberdade de pedalar desperta uma ânsia para desbravar a cidade. Lugares que parecem distantes pelo trânsito estão a poucos minutos quando sobre duas rodas. O cansaço é apenas uma sensação que passa com uma boa noite de sono.
A Camerata de Florianópolis havia divulgado que os ingressos para o concerto gratuito no Santinho estavam disponíveis para retirada em uma padaria local. Peguei a bicicleta, tracei a rota no Google Maps e fui ouvindo nos fones as instruções. Quinze minutos depois, e algumas subidas que testaram os músculos das pernas, cheguei ao meu destino. — Oi! Eu queria pegar os ingressos para o concerto — falei para a mulher no balcão. — Queria — respondeu. — Já esgotaram todos.
Ao retornar, esperei os carros passarem a fim de cruzar a faixa, no que um senhor em situação de rua olha para mim e grita PEDALA, VAGABUNDO. Fiz o que ele mandou.
A Praia do Santinho fica a alguns quilômetros mais distante da padaria que eu visitara naquela semana. Acordei cedo no sábado de manhã, organizei a minha bolsa com água e uma banana, e mais uma vez coloquei a moça do Google Maps para fofocar nos meus ouvidos.
As ruas vazias transmitem uma alegria incomparável; o desejo por uma utopia sem carros é latente. O mundo devia ser sempre assim: livre.
Para acessar a praia é preciso descer uma ladeira imponente. A bicicleta ganha vida própria, de modo que os freios são quase insuficientes. Minhas orelhas viram cumbucas de vento e já sei que mais tarde sentirei dor nos ouvidos. Naquele momento, entretanto, o que importa é a vista e o som do mar.
O mar parece uma panela de sopa no inverno. A maresia sobe e esconde as montanhas como o vapor que sobe até o teto da cozinha. Lindo.
Fico sentado por um tempo em um dos bancos de madeira, faço fotos e como a banana. A descida é fácil, mas como subirei a ladeira para retornar? Será que terei força suficiente? E se eu desmaiar?
Confio nas dezenas de resenhas que assisti sobre a bicicleta, e ponho as marchas para trabalhar. Percebo como ela é boa e como torna todo aquele processo tão fácil. Cansa, é claro, e fico ofegante ao chegar no topo, porém consigo alcançar o meu objetivo.
É hora de ir para casa com um sorriso no rosto.
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