Embora a corrente do rio nunca falhe, a água que passa, momento a momento, nunca é a mesma. As correntes formam bolhas na superfície, que estouram e desaparecem à medida que outras surgem para substituí-las, nenhuma durando muito. Neste mundo, as pessoas e suas moradias são assim, sempre mudando.
— Retratos de Minha Cabana. Kamo no Chōmei.
Domingo, 8 de setembro de 2024
Estou preso em casa. O ar está poluído, não tanto em Florianópolis, mas o suficiente para fazer o nariz chorar e a garganta arranhar como um ralador de queijo. Já tirei uma máscara da gaveta; uma daquelas PFF2 que sobrou da pandemia. Reclusão não-solicitada é o novo normal?

Outrora, uma pandemia
2021
A pandemia ainda come pelas beiradas, e devora a minha saúde mental. Vejo como solução a prática de exercícios físicos, de modo que levo a minha antiga bicicleta para uma bela reforma. Voltou da oficina amarela e brilhosa.
A dica que eu dou para qualquer pessoa interessada em começar a se exercitar, é: vá com calma. Este conselho vem do futuro, portanto não tenho como alterar o que se passou três anos atrás.
Decido acordar cedo para aproveitar bem o dia. Seis horas da manhã é o ideal. O sol ainda não está tão potente, e o calor, acredito, é ameno. Logo descubro o meu engano.
Pedalo quatro quilômetros até a praia que fica no meu bairro. A ida é tranquila e revigorante. Sou um completo imbecil, pois não levei água nem uma banana. O retorno mostra-se uma verdadeira tortura. Mal chego em casa, largo a bicicleta no chão e deito no piso gelado. Vislumbro uma constelação.

Ciclismo pré-apocalíptico
2023
Nesse período estou em alta da terapia, faço academia há mais de um ano e venho mantendo uma alimentação saudável. Poderia dizer que vivo a vida ideal. Pratico idas e vindas com a minha bicicleta até a praia, religiosamente, aos domingos de manhã.
A prática do ciclismo veio a calhar, porque faço entregas de café — tenho uma loja —, portanto o útil une-se ao agradável. Gosto de eu mesmo fazer as entregas, pois isso me mantém em uma rotina ativa, assim como me gratifica pelo dever cumprido.
Começo a não ter tanto desprezo pelo verão e sua brisa quente na minha pele.
A autoestima do corpo em forma permite que, pela primeira vez, eu saia sem camiseta nas minhas andanças dominicais. Chego à beira do mar [revolto], ouço as suas lamúrias e observo as pessoas, que meditam, que fazem fotografias, que sentam com seus copos de cerveja logo cedo como café da manhã.
Esbofeteamento invernal
meados de 2024
Inverno. É complicado, mas não deixo de pedalar quando surge a oportunidade. Florianópolis dá-me bofetadas de vento.
Gosto tanto de andar de bicicleta, mas o esforço físico acaba ficando em segundo plano por causa do esforço mental. Tenho que cuidar para não ser atropelado, e de quebra não atropelar quem fica desfilando na ciclovia porque pensa que ela faz parte da calçada. Por isso evito praticar em dias de semana, a não ser que necessite pelo trabalho.
Cara de paisagem [cinza]
Domingo, 8 de setembro de 2024
Vejo através do vidro da minha janela crianças andando de bicicleta, tocando suas sinetas e respirando o ar poluído sem saber que o nevoeiro, o céu cinza, não é torrencial. A chuva não vem; se virá, ácida.
A melancolia toma conta tal como um parasita. Imagino como seria bom um céu azul, uma bicicleta amarela para pedalar e um mar [revolto] para ouvir.
É mais uma daquelas coisas que a prevenção, como a de usar máscara, parece um tanto quanto exagerada. Nem é pra tanto. Lá vai a única pessoa de máscara andando na rua: eu. Os jornais fazem pouco caso; todo mundo anda calado. É para fingir normalidade?
Faça cara de paisagem. A paisagem está cinza.

Ciclismo apocalíptico
Terça-feira, 10 de setembro de 2024
Passaram-se dois dias desde a última vez que escrevi aqui. Hoje cedo encomendaram comigo uma entrega de café.
A fumaça em Florianópolis está amena, assim como a qualidade do ar, ao que aproveito para ir sem medo de estar respirando todas as toxinas possíveis. Mesmo assim o meu nariz fica levemente entupido. Mal posso imaginar como estão as cidades muito insalubres.
Minha bicicleta sofre subindo e descendo o meio-fio, batendo em pedra, descendo por uma fenda temporal criada pelo asfalto esburacado. Ela não foi feita pra isso, coitada.
O que seria de mim sem os exercícios físicos? Pego-me voltando ao pensamento catastrófico de que nunca mais verei o céu azul; de que, talvez, eu já tenha vivido o último ar puro. É um sentimento pós-pandêmico e pré-apocalíptico. Faz sentido chamá-lo de “pré-” ou já posso usar o apocalipse no tempo presente?
O desejo de não ter
Aproxima-se o meu aniversário de 33 anos; completo em dezembro. Nos últimos meses tem-me sido indispensável viver de forma consciente. Vendi alguns livros que ocupavam espaço, joguei diversos itens inúteis no lixo e voltei o meu olhar ao que importa.
Comecei a escrever este texto, porque fiquei inspirado pelo livro “Do que eu falo quando falo de corrida”, do Haruki Murakami. Os livros dele cutucam uma parte do meu cérebro que transmite uma sensação ótima de bem-estar. Fico fascinado pelo processo criativo dele, e admiro ainda mais a prática da corrida que ele mantém.
Diariamente reflito sobre a importância de manter um estilo de vida que não seja ansioso, consumista e compulsivo. Isso fica mais evidente na minha relação com objetos físicos; o espaço que ocupam atrapalha a clareza dos meus pensamentos. De agora em diante quero somente o que se dissolve, o que não existirá em uma semana.
Essa realidade também se faz presente nos filmes que eu assisto. Destaco aqui a pequena lista dos vistos recentemente:
- Nossa irmã mais nova (Hirokazu Koreeda)
- O mal não existe (Ryusuke Hamaguchi)
- Para o outro lado (Kiyoshi Kurosawa)
- One Day, You Will Reach the Sea (Ryutaro Nakagawa)
- A mulher que fugiu (Hong Sang-soo)
Note o padrão. São todos filmes que expressam a arte de maneira sutil, desenvolvendo narrativas baseadas em diálogos profundos, assim como retratando o cotidiano, muitas vezes, entediante. Não posso deixar de mencionar “Dias Perfeitos” (Wim Wenders), que revi durante a semana, porque eu precisava de alguma normalidade. Estou mais e mais cultivando as minhas escolhas como um jardim de sossego.
O escritor japonês Kamo no Chōmei (1155 – 1216) escreve no livro Hôjôki (Relatos da Minha Cabana) sobre a impermanência. Tendo testemunhado vários desastres naturais, o autor afirma que gastar dinheiro em mansões é tolo e infrutífero. Qual a finalidade de possuir se os desastres — hoje praticados por ação humana e não pela natureza — darão conta de levar tudo embora?
Ciclo
Quarta-feira, 11 de setembro de 2024
Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre. Insalubre.
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