O surrealismo se situa no coração da atividade fotográfica: na própria criação de um mundo em duplicata, de uma realidade de segundo grau, mais rigorosa e mais dramática do que aquela percebida pela visão natural. Quanto menos douta, quantos menos obviamente capacitada, quanto mais ingênua — mais confiável havia de ser a foto.
— Susan Sontag. Sobre fotografia.
O ano é 2014, estou sentado ao lado de colegas em um círculo para a aula de Linguagem Fotográfica; a professora no centro comanda o espetáculo. Em mãos, o livro Sobre Fotografia, de Susan Sontag. À época, o debate mais acalorado era o de tentar definir — de uma vez por todas — se fotografia é ou não um recorte da realidade. Lemos, relemos e analisamos cada capítulo minuciosamente. Seria a fotografia prova de alguma coisa?
Dez anos se passaram e me deparo com o mesmo questionamento, apesar de agora tê-lo como um mandamento: a fotografia não tem de ser nada — cada decisão tem um propósito, seja consciente ou inconsciente. Lentes com diferentes distâncias focais oferecem diferentes enquadramentos, o que faz a escolha técnica também uma forma de manipulação.
Troquei o meu equipamento, pois estava insatisfeito com a minha Nikon e lentes. Comprei uma Canon R10 e dei a ela a lente 16mm como parceira.
Muitos indicam a lente 50mm aos iniciantes na fotografia, pela sua leveza, baixo custo e imagens lindas como resultado. Segui esse conselho em 2014, e com ela produzi diversos trabalhos. Mais tarde, quando estragou, decidi comprar uma 35mm: de melhor construção e mais cara, fazia as mesmas fotografias bonitas, porém com uma distância focal maior. Ambas lentes, todavia, não capturavam as cenas em sua totalidade, gerando fotografias extremamente claustrofóbicas.
Para uma pessoa artista que está cansada das suas ferramentas, a troca do equipamento é um renascimento.
Pesquisei muito para decidir qual câmera comprar e qual lente deveria acompanhá-la. Era imperativo que fosse a mais ampla possível e que proporcionasse resultados como os de planos gerais em filmes. Acrescento: era necessário que as fotografias ficassem com uma certa distorção.
A fotografia é uma das minhas principais ferramentas de criação de arte. Observo o mundo e tento fazer dele outra coisa. Não estou fotografando para capturar aquilo que existe; quero que a imagem seja outro universo. Vejo nela a oportunidade de escrever ficção com luz. Por consequência, já ouvi várias pessoas tratando essas escolhas estéticas como defeito.
— Pena que ficou desfocada, né?
Nunca sei o que responder. Qual a função da pessoa artista nesse caso?
— Sim, foi de propósito. — Acabo dizendo isso.
Existe um embate entre quem fotografa e quem observa o ato de fotografar. Por que registrar o que é feio? Por que considerar como assunto as paredes irregulares de um estacionamento? O que faz interessante a escadaria mal iluminada e fantasmagórica? Por que não fotografar o que é belo?
Sontag afirma: “Ninguém jamais descobriu a feiura por meio de fotos. Mas muitos, por meio de fotos, descobriram a beleza.”
É fácil capturar o que é bonito por natureza. Já descartei dezenas de imagens de paisagem, porque em geral são sempre a mesma coisa. Por outro lado, quando o cenário mostra-se desafiador, seja pelas suas sombras intensas ou linhas que criam perspectivas interessantes, meu coração palpita.
Em 2019, viajando no banco traseiro do carro, decidi fotografar as cenas que passavam pela janela como um filme. O resultado foi imagens belas e perturbadoras. Desde então, sempre que tenho a oportunidade, repito o exercício, e sou surpreendido pelo que consigo prender nos milésimos de segundo após o disparo.
“O surrealismo sempre cortejou acidentes, deu boas-vindas ao que não é convidado, lisonjeando presenças turbulentas.”, a autora destaca o acaso fotográfico no capítulo Objetos de Melancolia.
A fotografia é uma caça. Precisa-se estar sempre vigilante, de modo a evitar que a presa fuja. Sou um caçador do acaso. Não à toa o ato fotográfico ainda é referido como um disparo. Na floresta dos instantes eu escolho a besta mais selvagem para enjaular.
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Referência:
Sontag, S. (1977). Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras.
Todas fotografias que ilustram este texto são autorais © Jonathan Holdorf
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