Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava.
— A Redoma de Vidro, Sylvia Plath
Memória é o aroma dos figos maduros numa brisa de verão. Passo as férias escolares na pequena cidade de Piratuba, Santa Catarina. Estou sentado em uma cadeira de plástico com uma câmera VHS em mãos. Gravo a quietude das folhas estáticas ao som da sinfonia das cigarras, que ecoa pelos barrancos cheios de mato. Sou um adolescente que sonha em um dia ser jornalista; entrevisto a minha avó Aurora e crio esquetes como se fossem programas da MTV.
— Chuva de verão caindo e a gente se alegra, tchururu. — O ritmo musical floresce do peito ao perceber as primeiras gotas caindo do céu.
Os pingos umedecem as pedras quentes e o solo seco causando um novo aroma no ar. Essa fragrância peculiar chama-se petricor e é estudada pela ciência desde os anos 60. A origem de petricor vem do grego: petra significa pedra, enquanto icor é o fluido etéreo que percorre pelas veias dos deuses gregos — é o sangue da pedra.
As pessoas precursoras desse estudo e que nomearam o fenômeno foram Isabel Joy Bear e Richard Thomas, cientistas de Melbourne, Austrália. Quando gotículas criam umidade no solo seco, óleos naturais em conjunto com bactérias liberam aerossóis que revelam o famoso cheirinho de chuva. Por ser um aroma tão popular, virou até um perfume reproduzido por uma empresa indiana. E adivinha qual é a fragrância do meu perfume atual? Isso mesmo, figo. Ao senti-lo pela primeira vez, fui transportado pelo tempo e lembrei daquela tarde de verão quando as nuvens começaram a se formar e as pequenas gotas caíram.
Paira um aroma terroso e açucarado no ar. A chuva aumenta de pingo a pingo e eu absorvo a brisa no rosto. Desligo a câmera e pego um figo do pé. Descasco pela pontinha como alguém que está prestes a comer uma coxinha frita de frango. Aliás, você começa pela bunda ou pela ponta? Eu como pela ponta. Enfim. O aroma é celestial, floral, surreal. O figo é doce e púrpura, lembrando vinho suave. Pego outro e o saboreio.
Descobri em Piratuba o sabor do figo colhido diretamente do pé. Observo curioso as vespas entrando nos frutos e deliciando-se com o néctar adocicado. Eu também preciso experimentar. Até então, minhas únicas referências eram chimia de figo e os figos em calda que a minha mãe costumava fazer.
Quando o estoque de chimia estava terminando ela levava o tacho de ferro, que mais parecia um caldeirão, até a garagem da nossa casa no Rio Grande do Sul. Jogava dezenas de figos com água e açúcar deixando-os sucumbirem ao calor. A mistura se transformava em uma massa cremosa borbulhante e fervente. Eu, pequeno, via tudo aquilo com uma curiosidade e vontade de chegar mais perto, mas era alertado que não me aproximasse. A colher de pau regia a orquestra enquanto os pingos quentes saltavam do tacho quase alcançando meus pequenos pés.
Quem nasceu no interior do Sul do Brasil sabe bem a diferença entre geléia e chimia. Geléia é aquele doce cristalino feito com a fruta e açúcar, já a chimia tem o mesmo conceito, mas tende a ser mais encorpada e menos transparente — praticamente pastosa, de visual opaco.
O pote de chimia de figo acompanha a minha família nos cafés da manhã desde sempre. O doce marrom com as sementinhas minúsculas e inofensivas pertencem ao pão de milho caseiro da mesma forma que eu pertenço ao figo. A qualquer momento, quando dá vontade, é só pedir que minha mãe resgata um vidro guardado de algum armário escuro.
De todas as variações das quais provei, o figo cristalizado foi o que menos gostei. O doce fica enjoativo e o figo some no sabor do açúcar intenso. Nas minhas pesquisas, no entanto, descobri o figo turco; a fruta é desidratada e tem a aparência de algo que você jogaria no lixo caso encontrasse em cima da mesa. Todavia, durante o verão úmido de Piratuba, o que eu mais queria era sentir o frescor do figo in natura.
Piratuba é conhecida pelas suas piscinas de águas termais que nascem das profundezas. A cidadezinha simpática de 5.769 habitantes, segundo o censo de 2022 feito pelo IBGE, fica a 428 km da capital Florianópolis. É tão pequena que você corre o risco de passar por ela e nem se dar conta. O centro trata-se de uma avenida linear cercada por montanhas, comércios e hotéis que representam a arquitetura alemã. Toda a cidade é uma espécie de colônia germânica; em outubro fazem desfiles e esbaldam-se em cerveja.
A nossa casinha ficava no topo da montanha. Meu pai comprou um terreno lá quando tudo custava um saco de açúcar e um aperto de mão; anos depois conseguiu fazer negócio com um amigo, que ganhou uma casa num sorteio e lhe vendeu para que fosse construída naquele pedaço de terra. Entre as viroses e os calores insuportáveis, o que permaneceu na memória foi o perfume dos figos dançando em harmonia com o sopro quente do verão.
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Minha história com o figo começou na infância e continuou na época da escola. Por um tempo, tive uma fase de ser muito fã do time espanhol Real Madrid. Não é de se admirar, pois peguei a época dos galácticos originais, com David Beckham, Ronaldo Fenômeno, Zidane e Luís Figo. Eu andava por todos os lados com a minha camiseta pirateada do craque número dez. Alguns colegas começaram a associar meu rosto ao nome estampado na camiseta e, por um breve período de tempo, eu fui chamado de Figo pelas pessoas. Não durou muito.
Mas não importa o que eu faça, parece que essa fruta continua tentando criar um vínculo comigo e aparece nas situações mais inesperadas. Em Os Catadores e Eu, de Agnès Varda, um documentário no qual a diretora mergulha no universo dos catadores da França, que esperam a safra terminar para colher as frutas que caíram dos pés, Agnès pega o figo gigantesco na mão e inverte a sua carne, mostrando o interior suculento e vermelho para a câmera. Come com vontade e aprecia o seu sabor quase alcoólico, segundo ela.
Onze mil anos atrás, num acaso daqueles que só acontece com a nossa espécie, as pessoas que moravam próximas de uma figueira decidiram provar a fruta. Seu sabor surpreendente fez com que tivessem vontade de replicar aquela árvore para que mais pessoas conhecessem a maravilha ali descoberta. Um detalhe: aqueles figos não tinham sementes e as vespas não conseguiam entrar pelo buraquinho para fazer a fertilização. A solução foi arrancar um galho da árvore e colocá-la no chão. Não é que deu certo? Uma nova figueira nasceu. E assim foi-se replicando esse fruto tão improvável que, mesmo sem sementes, continuou existindo. Temos evidências de que essa primeira figueira ainda produz em diferentes cantos do mundo. Uma figueira nascida de um galho e um desejo: espalhar algo bom para outras pessoas.
Quase 10 anos atrás, quando vivia em outro bairro de Florianópolis e ainda estudava fotografia, semanalmente ia até o Direto do Campo próximo à quitinete na qual eu morava. Todas as vezes minha missão era vasculhar o corredor de frutas inteiro em busca de alguns figos frescos. Frustrado, voltava para casa de mãos vazias. Estaria eu vivendo em outro universo?
A escassez de figos nos supermercados de Florianópolis já não é mais uma novidade para mim, porém um dos principais pontos turísticos e mais belos da capital é a Figueira da Praça XV. A Velha Figueira, como é conhecida, é uma espécie exótica vinda das partes tropicais da Ásia e Austrália. Foi um dos primeiros lugares que conheci quando vim morar na cidade.
Essa Figueira Centenária guarda folclores em seu entorno. Caso nada tenha dado certo na sua vida amorosa, ainda há esperança. Compre sua passagem para Florianópolis e vá até a Praça XV. A figueira é gigantesca, então você a encontrará facilmente. Dê duas voltas ao seu redor caso seu objetivo seja encontrar uma pessoa com a qual se relacionar. Se você pretende juntar os trapos em união matrimonial, dê três voltas. Aos desejos comuns, a figueira estabelece um padrão de voltas. Por exemplo, se um dos seus pedidos for o de ganhar motivação para ir à academia, caminhe sete vezes ao redor da árvore. No final do desafio você já terá preparo físico.
Durante 10 anos vivendo em Florianópolis, nunca fiz pedidos à figueira. Para falar a verdade, descobri só agora que existe esse folclore envolvendo ela. Gosto de acreditar, no entanto, que ela ouviu alguns pedidos silenciosos e realizou pequenos sonhos.
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Escrever este texto desbloqueou memórias. A cada mergulho, reencontrei vivências que estavam esquecidas. Fui descendo nas profundezas e lembrei dos idos tempos de quando comecei a publicar na internet. O blog que eu atualizava semanalmente desde 2008 ainda existe e nele as minhas antigas reflexões permanecem intocadas. Acho fascinante reencontrar aquela pessoa que, por mais que tenha vivido e evoluído, me faz encarar questionamentos que hoje são pedras fundamentais da minha personalidade.
Quando decidi voltar a escrever o fiz como uma dívida comigo mesmo. Passei alguns anos com a saúde mental prejudicada e, desde então, o que eu criava ficou estagnado. Lutei contra a pressão de fazer arte para ganhar dinheiro — perdi a batalha desastrosamente; fugi o máximo que pude da corrida pela atenção do engajamento. Seria tolo se eu afirmasse ter escapado de tudo isso ileso; ainda olho os números e fico querendo mais.
Existe uma coceira dentro de mim. Deve ser a vespa fertilizando a minha alma e dizendo assim: faça nascer o fruto mais doce. Estou dando uma oportunidade nova para essa pessoa que cresceu com tantas dúvidas sobre si e que esteve guardando a sua flor por longos anos sem mostrá-la ao mundo. Os anos de dor estão no passado e acho que estou pronto para adocicar com as minhas palavras quem tiver disponibilidade de ler.
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