Resenha | Por onde deuses espiam

Um astronauta cai no terraço de um prédio em uma pequena cidade da França; um homem se recusa a pagar o valor combinado pela troca do elevador e acaba precisando mais dele do que qualquer outro morador; uma atriz famosa recebe ajuda de um adolescente rabugento. Fique Comigo (Asphalte – 2015) é um filme que retrata encontros improváveis na mais pura essência humana.

“Como é o espaço?”, pergunta a simpática dona Hamida ao astronauta norte-americano hospedado em seu pequeno apartamento. Ao que ele explica, rabiscando em uma folha de papel durante o jantar, que é como o oceano: infinito e está por todos os lados. As estrelas, como acreditavam os gregos, são pequenos buracos pelos quais os deuses espiam. É dessa forma singela que o filme – adaptação do livro Chroniques de l’asphalte de Samuel Benchetrit – proporciona um aconchego e abraça quem o assiste.

Desde 2019 tenho cultivado uma tradição de assistir a filmes cujo o propósito seja aquecer o coração. É raro que eu veja muita ação na tela. Gosto de deitar na cama, debaixo das cobertas, com as luzes desligadas e aproveitar uma estória que seja acalentadora, simples e que traga alguma possível reflexão.

A escrita da crônica me incentivou a buscar novas referências na leitura e no cinema. Na literatura descobri a revista Quatro Cinco Um, que é literalmente (haha) sobre livros. São diversas resenhas que englobam assuntos importantes como o racismo, a invasão em Brasília pelos terroristas no dia 8, ficção japonesa etc. A vantagem de ser um assinante trouxe um desconto de 100% na plataforma À la carte do Cine Belas Artes por um mês. Lá tenho acesso a filmes cult, que dificilmente encontrarei em outros lugares – principalmente em cinemas de shopping. Não sou cinéfilo, pouco assisto a filmes durante o ano, por isso quando o faço preciso que seja uma escolha certeira. Foi aí que descobri Fique Comigo dirigido pelo autor do livro que o inspira e estrelado por ninguém mais ninguém menos que Isabelle Huppert – adoro os filmes dela!

O enredo começa com uma importante reunião: a troca do elevador do prédio que está defeituoso. Todos votam sim pela troca e pelo valor acordado de pagamento mensal, menos uma pessoa: o morador do primeiro andar. Seu argumento é que não usará o elevador, pois sempre vai de escadas para casa, então não vê sentido em pagar. Ao que um dos moradores questiona “você não tem solidariedade?”. Ele diz que tem, mas que não pagará mesmo assim. Mais uma reunião é feita, dessa vez sem o rapaz do primeiro andar, e é tomada a decisão de que ele não precisará pagar, porém nunca poderá usar o elevador.

Todos votam sim.

Como a vida é cheia de suas ironias, o homem que se recusou a pagar pela troca do elevador vai parar no hospital e fica em cadeira de rodas. Agora está impossibilitado de usar a escadaria.

Em cada uma das “crônicas” vemos uma dificuldade: a atriz interpretada por Isabelle Hupert está de mudança, fica trancada fora de casa e um adolescente a ajuda. Ali ele descobre que ela é uma famosa atriz, assistem a um filme estrelado por ela juntos e ele a auxilia na gravação de um vídeo para audição de um novo papel; o rapaz do elevador faz amizade com uma enfermeira e finge ser fotógrafo da National Geographic em uma sequência de mentiras para fazer amizade, já que é um homem solitário; e a dona Hamida, que já falamos sobre, hospeda o astronauta perdido até a NASA localizá-lo e levá-lo de volta aos Estados Unidos.

Não é à toa que Fique Comigo está na categoria “Para aquecer o coração” na plataforma À la Carte. Temos uma narrativa sobre pessoas distantes e diversas criando conexões improváveis. É como compartilhar um café da tarde ou usar o guarda-chuva para dar carona a alguém em uma tempestade.

Mais do que uma sensação, o filme nos mostra as possibilidades de encontros com quem parece-nos tão distintos; de conhecer novas histórias e culturas. É de provar um cuscuz marroquino na casa de uma senhora simpática que sofre com seu filho cheio de angústias. É de perceber que, mesmo em uma comunicação limitada por idiomas diferentes, ainda assim temos a capacidade de convidar alguém para o nosso lar, partir o pão e ter uma conversa profunda.

O filme francês é tão belo em mensagem como cinematograficamente, retratando de forma minimalista o suburbano da França e fazendo oposição à imensidão do universo. Em cortes bruscos que nos levam para o veículo espacial temos a impressão de que estamos vendo takes reminiscentes de 2001: Uma Odisseia no Espaço.

Nossas vidas são narradas por situações comuns, repletas de cotidianos e estamos a todo instante buscando uma nova forma de receber aquela dopamina viciante; talvez o olhar para a simplicidade das coisas e o agradecimento por elas nos faça seres humanos melhores. Pode ser que nada mude nas breves interações com pessoas improváveis no ponto de ônibus ou na padaria, mas é possível que nelas surjam experiências que mudem vidas – mesmo que por um instante.


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