Texto originalmente publicado na minha newsletter
Algumas coisas nesta vida são perfeitas se consumidas em poucas quantidades. Um tablete de chocolate 70% é suficiente – dá vontade de pegar mais um, mas a magia é justamente saboreá-lo aos poucos. A mesma coisa acontece com uma taça de vinho ou um livro que termina de forma ambígua, mas satisfatória. Nem sempre precisamos de uma sequência.
Recentemente estive lendo a compilação de discursos, divagações e textos selecionados do Neil Gaiman no livro The View From the Cheap Seats e ele comenta em um dos capítulos sobre a experiência de ver a pintura The Fairy Feller’s Master-Stroke (fig. 1) pessoalmente. Ao passar os olhos pela imagem, que pesquisei enquanto lia para acompanhar o raciocínio, percebi como ela é única. É algo que eu vejo e espero nunca encontrar outra similar ou da mesma série. Inclusive, usei de minha ignorância para permanecer alienado e não descobrir se existem mais. De qualquer maneira, Neil explica no capítulo que a pintura não foi finalizada, que faltam detalhes e que isso a deixa completa.
É um tablete de chocolate 70%.
Aliás, este é um sentimento que vem acontecendo há um bom tempo comigo. Tive a mesma experiência com o livro – também do Neil Gaiman – O Oceano no Fim do Caminho, com o filme Parasita (2019) e com a série The Young Pope e sua segunda temporada The New Pope.
Algumas coisas são perfeitas do jeito que são.

Então comecei a olhar para o meu próprio trabalho. The Funeral (fig. 2) foi criada por mim em 2019 (post sobre esta foto). Eu considero uma das melhores que já fiz até hoje, mas isso é questão de perspectiva. Existem diversas outras versões dessa fotografia, mas nenhuma captura a essência tão singular que esta proporciona. Apenas ela consegue refletir a minha intenção.
Uma taça de vinho é suficiente.

Eis que entrei em um campo reflexivo sobre outras produções que já criei, especificamente o meu podcast no qual falo sobre fotografia. Levei meses para publicar o segundo episódio, porque não conseguia concluir o roteiro dele, e eu precisava que O Violino de Ingres fosse o segundo episódio.
Pensei que nunca mais conseguiria continuar com o podcast até que tomei uma iniciativa e finalizei o texto. Agora está no ar, lindo e alegre. Não muito longo, não muito curto. Perfeito da forma como eu sempre quis, mas imperfeito, pois tudo na vida é uma evolução constante.
Portanto, sinto que cada episódio deste podcast será para mim – e espero que para você também – como um tablete de chocolate 70% ou uma taça de vinho. Suficiente.
Apenas suficiente.